domingo, 10 de agosto de 2014

"Um retiro abençoado"


O país unia-se em alvorosso!
O Euro 2004 trazia uma alegria contagiante aos corações Tugas e,
pelas ruas estreitas da zona ribeirinha aglomeravam-se camisolas de todas as cores e nacionalidades.
Entre uma bejeca e uma francesinha esqueciam-se os partidos e uniam-se corações.
Eu buscava algo mais que uma mini ou um tremoço...

Uma vaga num dos hoteis da cidade do Porto!
Digamos que iria começar uma espécie de missão impossível...
uma vez que a cidade estava a transbordar de forasteiros.
Hotéis de 5 estrelas, de 2 ou mesmo de nenhuma estrela estavam todos ocupados.
Virei-me então para as pensões...
De telefonema em telefonema a resposta repetia-se.
"Estamos lotados, menina!"
O pânico começou a sombrear-me o raciocínio e resolvi ligar para a empresa a pedir ajuda.
Do outro lado atende-me uma secretária estagiária (bonito...)
Depois das apresentações feitas virei-me para o mais importante, um quarto para 4 noites.
Do outro lado ouço um "Concerteza" cheio de entusiasmo e desligei com uma nova sensação de alívio.
Dali em diante o meu telemóvel não parou.
Tinham-me descoberto umas pensões no centro do Porto LIVRES!
FANTÁSTICO!!!
Sem perder tempo ligei de imediato.
Do outro lado atende-me uma voz de senhora com pronúncia brasileira:
"Alô? Sim sim. Temos vagas garota! Para quantas horas é?"
Do meu lado fez-se silêncio...
(Devo ter ouvido mal.)
Pedi para repetir alegando que a ligação estava má.
A pergunta repetiu-se.
(Meu Deus... Para onde estaria eu a ligar??)
De novo o silêncio...
Engoli em seco e desliguei.
Estava feita... só havia pensões de "pagamento à hora"!

Agora a desmotivação era completa.
Vagueava pelas estradas olhando a minha mala de viagem no banco de trás e já imaginando a posição que adoptaria se decidisse dormir no carro.
O telemóvel tocou de novo e dei um salto.
Seria a Sra. da "pensão à hora"??
Ufa... felizmente era a secretária-estagiária da empresa.
Atendi sem grande paciência mas um atropelamento de palavras saltou do outro lado dizendo que tinha arranjado um local PERFEITO!
Ainda sem perceber nada, deixei-a falar sôfregamente mais um pouco.
Parecia real.
Encontrara um sítio para pernoitar.
Nem acreditava!
A localização parecia perfeita.
Tinham vagas para as 4 noites e serviam pequeno-almoço e tudo.
Bem, pelo sim pelo não, lá fui eu então.
Passando a ponte da Arrábida entrei nos subúrbios, pacatos e familiares.
Avisto um hotel com muito bom ar e, pela descrição da localização dada pela secretária estagiária, seria aqui.
Ufa...
Cheguei...
Vou finalmente poder tomar um banhinho!
Apressadamente entro na recepção e dou o nome sem demoras.
Do outro lado a coisa demora-se.
Começo a inquietar-me...
"Tem a certeza que a reserva está neste nome?" - pergunta-me a recepcionista com uma pronúncia carregadíssima.
Tive para lhe responder à tripeira, mas contive-me. 
"Sabe, é que estamos lotados. E esse nome não se encontra aqui no computador."
Pronto... comecei a ferver...
Depois de ter passado o dia na estrada num calor infernal, levar com as obras das pontes por causa do Euro, lidar com pensões de "pagamento à hora" e já cheia de fome... resolvi educadamente mostrar a morada à menina antes que me fosse às suas goelas em forma de pit bull!

"Esta morada é daqui sim, mas é do outro lado da avenida. É um retiro de padres onde os ranchos folclóricos costumam ficar durante as festas da Nossa Sra. dos Aflitos."
(Hummm?? Seria do calor, ou tinha acabado de ouvir que tinha reserva num retiro de padres??)
O meu sorriso amarelo agradeceu a informação e a minha mão fechada em forma de murro arrastou a mala até ao outro lado da estrada. 
Já com os dentes cerrados e os olhos raiados, entro no retiro com uma aurea de anti-cristo.
Assim que entrei deparei-me com imagens e cruxifixos por toda a parte.
Vitrais, velas, rendas e um cheiro peculiar a pataniscas de bacalhau.

"Benvinda minha menina! Já sei quem é, temos aqui a sua reserva."
Ainda tentei fazer o meu olhar maqueavélico nº49, mas o quadro da última ceia por detrás da recepção remeteu-me para o desespero de uma comidinha caseira.
Pela escadaria em madeira escura, o senhor Matias da recepção levou-me aos aposentos, contando-me a história deste retiro.
Enquanto subia os degraus impecavelmente encerados, olhava em volta e tudo se assemelhava a um convento ou igreja.
Glup.
Imagens de santos e quadros com imagens bíblicas vagueavam pelos corredores interiores.
Chegando ao quarto já me imaginava caír redondamente no colchão e morrer para o mundo nas próximas 8 horas.
"Aqui está menina, chegámos, é o nº 14."
Disse-me sorridente o Sr. Matias, enquanto abria a porta com uma chave de ferro, versão "Claustro".
"Tem um armário para colocar a sua roupinha e água quentinha. Durma bem!"
Entrei a medo, agradecendo com a cabeça e esbocando um sorriso forçado.
Fechei a porta e senti o silêncio.
Não podia ser assim tão mau.
Olhei a cama, pequenina e dura e sentei-me para respirar fundo.
O armário da roupa em nada se assemelhava a um roupeiro.
Pequeno e espetado na parede, cabia uma camisa e uma ou duas camisolas, no máximo.
Inclinei-me para trás para espreitar a casa de banho e dei um salto!
Na parede da cabeceira encontrava-se um colossal cruxifixo de madeira escura, com quase metro e meio.
Seria impensável ter pesadelos ou sonhos eróticos naquela cama!
Medo...
Mas o cheirinho a pataniscas de bacalhau que vinha da cozinha era um mimo e nesta fase de tormento seria o fim das minhas lamúrias.
De banhinho tomado desci para a sala de refeições.
A D. Maria, esposa do Sr. Matias, albergava nos braços uma travessa de pataniscas de bacalhau direitinha para a mesa. 
Os meus olhos já nada viam senão comida, portanto sentei-me à mesa e limitei-me a esperar até o prato ficar cheio.
De repente ouviram-se vozes no corredor da recepção.
A voz do Sr. Matias transformara-se em gargalhadas de alegria.
Quem seria??
O retiro estava vazio, só cá estava eu... feita Madalena arrependida.
O alvoroço sobressaíu para o corredor e entraram aproximadamente 20 padres no salão de jantar.
Ainda tentei fugir... mas entraram a cantarolar e a benzer tudo e todos.

ARRRGGGG....
(fizera eu mal a alguém nos últimos tempos para levar com esta água benta toda??)
Engoli o jantar e escapuli-me para a rua alegando querer vêr o jogo Portugal-Holanda... acho eu...
Parecia em 5 segundos Judas a fugir da cruz!

Lá fora tudo gritava também, mas desta vez por causa do jogo.
Menos mal...
As mesas enchiam-se de cervejas e pratos de tremoços.
Ajeitei-me numa mesinha de canto e pedi uma coca-cola (fraquinha...)
O jogo já estava a 10 minutos do fim.
Tudo se descabelava, estávamos empatados.
Não sei o que seria melhor neste momento...
se cantar com os padres as músicas do eucaristia ou levar com os gritos de bêbados frustrados.
No quarto também não tinha televisão... portanto deixei-me ficar.
Quando já piscava o olho entre o João Pestana e o prolongamento do jogo... ouviu-se uma gritaria em coro.

GOOOooooooOOOooLLLlllloOOOOOOOooooo!!!!!

Pronto... ao menos Portugal ganhava o jogo! Seria a boa notícia do dia!
De repente a minha mesa encheu-se de cervejas e entremeadas gordurosas e, vindos do nada, um grupo de camionistas abalroou-me em euforia.

Poooortugal! Poooortugal! Poooortugal! Poooortugal!

Ok... pode haver cruxifixos, eucaristias e água-benta, mas os padres são definitivamente uma companhia mais bem cheirosa que esta.

HUMPF!



Baseado em factos reais - 2004